A família é o primeiro núcleo gerador de identificações, que vão, em seu conjunto, permitir a formação da personalidade.
Identificação, no sentido da teoria psicanalítica, significa “tornar-se igual a”, trata-se de um mecanismo psicológico que faz com que tornemos nossa, uma característica que pertence a outra pessoa e que, por algum motivo, “gostamos” e nos “apropriamos” tornando-a nossa.
Esse processo de identificação e de formação da personalidade é característica dos seres humanos.
Pode-se dizer, portanto, que a família é o primeiro núcleo gerador de “humanidade”.
Humanidade, palavra aqui colocada em contraposição à animalidade.
SER “HUMANO”.
O que é isso? Sabemos apenas que para nos tornarmos humanos, dependemos primariamente, dos cuidados da família. Sem ela, não se sabe o que seríamos.
Existe um filme muito interessante, chama-se “O enigma de Kaspar Hauser” de um cineasta chamado Herzog, que especula, de uma forma muito instigante, o que aconteceria, como seria possível uma pessoa se desenvolver sem ninguém cuidando dela, sem ninguém que a introduzisse ao mundo humano, da civilização. Kaspar Hauser, o protagonista do filme, existiu realmente. Foi apenas mantido vivo, não se sabe por quem, alimentado e agasalhado, porém sem nenhum outro contato com seres humanos.
O filme é a história de sua vida, desde que foi encontrado em uma praça, portando um cartaz, até sua morte em circunstâncias misteriosas. Seu progresso, no sentido de “humanizar-se”, o impacto que causava nas pessoas e o impacto que as pessoas causavam nele, pode ser visto no filme e é exatamente isso que o torna inesquecível.
Lembrei-me desse filme quando comecei a pensar neste artigo, porque – deixando de lado exceções absolutamente raras e estranhas como a do Kaspar Hauser – já se sabe que, nesse processo de humanização dos seres humanos, as identificações iniciais que constituem o núcleo da personalidade, decorrem dos primeiros relacionamentos (a psicanálise chama de “relações de objeto”), exatamente com os componentes da família, que farão com que o sujeito tenha traços vindos de diferentes pessoas, percepções do mundo e da realidade que, originalmente, eram dos pais e demais familiares.
O processo todo se assemelha ao que ocorreu conosco fisicamente, quer dizer, o modelo físico, de surgimento da nossa estrutura corporal, também vale para se entender como se estrutura o modelo psicológico.
Não se diz, por exemplo, que determinado sujeito tem “o nariz do pai, os olhos da mãe, o andar do avô?”
Da mesma maneira, os filhos têm aspectos psicológicos absolutamente diferentes dos pais, porém formados por aspectos vindos dos modelos originais (coincidência de alguns desejos, organização dos mesmos, defesas psicológicas, e maneiras de se relacionar com outras pessoas).
Tudo funciona como se organizássemos novos “desenhos”, com traços e cores, inúmeras “partículas” vindas de outros, assim como num caleidoscópio os desenhos e formas resultantes vêm do reagrupamento de pequenos pedaços de papel originalmente pertencentes a outros formatos e desenhos.
Esse processo, que é uma espécie de “colagem”, de “cópia” modificada do original, que, aliás, começa com imitação pura e simples mesmo, de um comportamento, de um jeito de pensar ou de sentir, vai ganhando modificações até se tornar parte integrante da nova pessoa, um novo e único “eu”.
O conjunto de inúmeras identificações na sua origem semelhantes a esse exemplo físico citado, fará com que surja uma nova personalidade com estrutura mista, híbrida, totalmente diferente dos originais, porém deles derivada.
Nossa personalidade, o que chamamos de “eu”, é o resultado, portanto, de todas as identificações que fizemos, de todas as remontagens psicológicas que processamos durante a vida.
Compreendendo então que todos temos algumas características psicológicas que herdamos dos nossos pais e de outros membros da nossa família de origem, a questão que se coloca é saber o que faz com que às vezes, nesse processo de constituição de uma nova pessoa, alguma coisa se perca ou algum detalhe desconhecido se agregue de forma a originar “defeitos” os chamados “transtornos de personalidade”.
Que detalhes são esses? Que mecanismos permitem que isso aconteça? É possível evitar isso?
Principalmente, é possível “consertar” esse fato?
Esse é o grande enigma da existência. A compreensão desse processo é uma das grandes ambições da psicologia. As reflexões sobre a origem de determinados comportamentos patológicos observados em pessoas com problemas, – quando consideramos também a dimensão psicológica, não apenas as alterações na dimensão orgânica, neuronal, atualmente muito valorizadas pela psiquiatria biológica – originaram diversas teorias que chamamos de psicodinâmicas, que buscam as causas desses comportamentos e sensações patológicas em falhas no desenvolvimento psicológico.
Procurando compreender esse processo de desenvolvimento, seus pontos-chave, seus entraves, os mecanismos que o compõe, do que é constituído, estaremos também adquirindo maiores possibilidades de influir na educação de nossos filhos e também no tratamento de problemas psicológicos pois estes nada mais são que sinais e sintomas decorrentes de falhas nesse processo.
Para isso é necessário o estudo das teorias que tentam dar conta da formação da personalidade, particularmente desenvolvimentos teóricos psicanalíticos e também análise de padrões comportamentais repetitivos de ação e inter-relacionamento dos familiares que podem gerar comportamentos também repetitivos, inadequados nos filhos.