O cineasta dinamarquês Lars Von Trier é um iconoclasta por vocação.
Todos os seus filmes agitam as tradições cinematográficas de uma ou de outra maneira porque ele as modifica em seus fundamentos. Um exemplo disso é a fórmula que encontrou para “Dogville”: não existem cenários, os diversos settings onde se realizam as cenas são apenas desenhados no chão. Paradoxalmente não se sente falta deles. A trama impactante se desenrola normalmente, não precisamos de contextos cenográficos para acompanhá-la, compreendê-la e admirá-la.
Seus enredos desafiam os conceitos psicológicos, sociais, políticos, arduamente conquistados pela humanidade no decorrer da nossa história e que estão arraigados no nosso modo de viver contemporâneo. Abalam nossas crenças em instituições de maneira muito peculiar, em sequências de beleza visual extraordinária.
Ele é contra paradigmas por princípio, contra quaisquer teorias que tentem de alguma forma explicar ou pelo menos dar conta de um aspecto, de uma questão humana. Está sempre na contramão do já feito, dos clichês, da mediocridade, sempre tentando quebrar toda corrente de pensamento institucionalizada, cristalizada. A Psicanálise, a Filosofia, a Física são frequentes alvos da sua iconoclastia. Constrói seus personagens sempre com alguma intenção de denúncia de clichê, que fica muito clara quando observamos suas interações nos ambientes cênicos.
Acontece que não se pode derrubar tudo, sempre. Ou pelo menos não tudo de uma vez. Algumas demolições precisam ser preparadas para que aconteçam em ambientes propícios.
Existem algumas condenações, alguns julgamentos de valor da história da humanidade, que são definitivos, imperturbáveis, devem permanecer inalteráveis, têm mutabilidade muito próxima a zero. A condenação eterna, o exílio definitivo da ciranda das idéias humanas, para quem assassinou covardemente, com requintes de crueldade, trinta milhões de pessoas, por exemplo.
Lars Von Trier quis demolir também, essa não escrita lei constitucional da humanidade, na coletiva de imprensa do Festival de Cannes de 2011, quando afirmou que “entendia Hitler”, levianamente, histrionicamente, ao lado de uma Kirsten Dunst visivelmente constrangida, como resposta a uma pergunta provocativa qualquer? Quem sabe?
Deu no que deu. Por causa dessa fala infeliz, atabalhoada, expulsaram-no do Festival de Cannes, passaram a considerá-lo persona non grata, apesar de se saber que é iconoclasta de carteirinha e que sua iconoclastia é só jogo de cena, inofensiva. Deixaram, porém, que o filme continuasse na competição e Kirsten Dunst interpretando a personagem Justine, ganhou o prêmio de melhor atriz do ano. Acontece que Justine é Lars Von Trier. A decisão do festival de não relevar a idiotice do cineasta, é análoga, especular à do próprio, mas de um reacionarismo compreensível. Como disse anteriormente, o jogo do convívio social tem suas regras, algumas invioláveis.
É levando em consideração essas características de personalidade do seu diretor – por se tratar de um filme autoral – que vou tecer considerações mais detalhadas sobre o filme Melancholia de Lars Von Trier.
Para começar, sugiro uma espécie de treino para olhar para acontecimentos da vida com os olhos do diretor, com os olhos de alguém que se incomoda com a cristalização de determinadas teorias, de determinados contextos sociais. Tentemos pensar um pouco como o diretor. Tem que haver no nosso pensamento, uma certa implicância com o estabelecido, tem que haver insatisfação com respostas científicas parciais que se consideram definitivas sobre fenômenos psicológicos ou físicos.
Vejamos alguns fatos misteriosos da vida no nosso planeta. O primeiro deles, um documentário que vi há pouco tempo em um canal de TV, aparentemente não tem nada a ver com o filme mas me lembrei imediatamente do Melancholia quando o vi, por ser uma questão que muito interessa à ciência e que continua misteriosa. Trata-se do seguinte:
Borboletas Monarca saem dos EUA com destino ao México, viajando mais de 2.200 km, para fugir do inverno. O fenômeno é monitorado por cientistas, não há muito tempo; apenas em 1975 se descobriram os locais certos de invernadouro delas no México. Bicho tão frágil solto ao vento, corpinho franzino, inadequado para a enorme travessia, dezenas de milhões de borboletas, fazem o trajeto, juntas, voando por aproximadamente um mês para chegar ao seu destino. Como se explica isso? Que espécie de força as induz à viagem? O que as mantém juntas, como sabem para onde se dirigir? Por que voltam, depois? Quem é o chefe que comanda essa ida e volta num balé tão perfeito e que ocorre sem ensaio nenhum?
Outro fato: a melancolia, quadro psiquiátrico grave, incomoda a humanidade há muito tempo. A palavra se origina do grego, (Houaiss) melagkholía,as lit. ‘condição de ter bile negra’, donde ‘humor negro, melancolia’, de mélas,aina,an ‘negro’ + kholê,ês ‘bile’. Freud, desenvolvendo sua teoria psicanalítica, nunca perdeu de vista o quadro clínico tão preocupante; por muitos anos refez, repensou, ajustou e articulou seus conceitos, de maneira a construir o início de um todo coerente que pudesse contribuir para compreender melhor suas causas e os mecanismos psicológicos intrínsecos, que a explicassem e que a difenciassem do luto e de uma depressão simples. Acreditava numa causa psicológica para a mesma. Essa idéia persiste, em parte, porém, apesar de certa coerência nessa tentativa psicanalítica de Freud e dos outros autores que continuaram a desenvolver, corrigir e somar conhecimentos a essa pretensa estrutura patológica, continua sendo um mistério ainda hoje, século XXI. A psiquiatria moderna, contando com suas espetaculares recentes teorias sobre o funcionamento da rede de neurônios e com o poderoso arsenal terapêutico da psicofarmacologia atual, ainda não conseguiu decifrá-la em seus mecanismos íntimos, nem dar conta do quadro clínico complexo que não se resolve nunca totalmente.
Um último fato: deixando de lado a questão patológica, a simples questão amorosa que tanto bem e mal causa à humanidade, também continua enigmática, com filósofos, artistas, poetas, escritores, cientistas, elaborando teorias e mais teorias para explicar o Amor, seus rompantes, suas desavenças, seu início, seu fim.
Pois bem, estes são exemplos de fenômenos até hoje mal explicados, as teorias inventadas e descobertas para explicar suas causas com o sentindo de minimizar seus efeitos, são todas muito precárias quando observadas de perto. É um assunto fascinante para se fazer um filme.
Quem, do cinema, poderia se interessar por coisas do gênero?
Lars Von Trier, claro.
Não fica difícil verificar que o filme Melancholia é outro brado retumbante – não brasileiro, infelizmente, mas dinamarquês – contra a ignorância humana, uma alegoria que retrata a ruptura e queda total de todas as teorias e hipóteses científicas, filosóficas, psicanalíticas sobre a experiência humana.
Não é o fim do mundo concreto que Lars Von Trier quer mostrar.
A tese que defendo é que o autor pretende, com o filme, fazer o que sempre faz: uma espécie de inventário do que conseguimos até o momento, demonstrar a maneira de lidar com esses assuntos nesta nossa época e sugerir no final do filme a demolição total de tudo que foi construído, a volta a um estado primitivo necessário para podermos progredir melhor na nossa compreensão da vida, já que as respostas todas que conseguimos formular em dez mil anos de história, com a ajuda da ciência, da filosofia e da psicanálise, não são sempre verdadeiras e nem totalmente satisfatórias.
Desse ponto de vista ficam mais explicáveis determinadas cenas que aparentemente não se casam bem com o contexto geral do assunto do filme. Veja-se esta interpretação: nossas melhores teorias científicas e filosóficas, nos trazem o conforto de uma limusine. Nós a inventamos e construímos estradas onde elas deslizam suavemente, levando-nos a muitos lugares de forma extremamente confortável. Resolvemos uma porção de problemas com elas, tornaram nossa vida melhor. Mas não é sempre que podemos utilizá-la.
As estradas que o Universo nos apresenta não são todas asfaltadas e largas.
São, na maioria das vezes, extremamente tortuosas, pequenas, impróprias para serem percorridas por limusines. Um dia teremos que jogar fora a maravilha que tanto trabalho nos deu para inventar e que tanto nos agrada, para continuar nossa viagem a pé, até que inventemos ou descubramos outras alternativas de transporte rápido para nosso percurso.
Essa é uma das melhores alegorias secundárias do filme.
As cenas que mostram a dificuldade do casal em conseguir passar com a limusine pelo estreito e tortuoso caminho de chegada ao castelo, são impagáveis. Não aconteceu ali a necessária congruência entre o caminho e o veículo, da mesma forma que não há encaixe possível entre a brilhante e confortável limusine psicanalítica e a tortuosa estradinha da melancolia.
Olhemos, agora, para Justine.
Quando vi o filme pela primeira vez, fiquei muito incomodado e não percebi, de imediato, o porquê do meu incômodo. Alguma coisa que emanava daquela personagem me atrapalhava muito. Percebi, depois. É que ela não se parece com nenhum modelo humano ao qual estou acostumado. Mágica, misteriosa, meio bruxa, com uma série talentos e poderes, de adivinhação, por exemplo, de inteligência aguda, não se enquadra em nenhum estereótipo, em nenhuma teoria psicológica; o desenho da sua personalidade, suas condutas, são totalmente imprevisíveis. Não liga para nada, age sem ter motivos compreensíveis, aparentemente não é movida por convicções filosóficas, sociológicas, não tem desejos claros, não tem ética, não tem fins, não se articula nem está preocupada em se articular socialmente, não goza, não ri, não chora, não seduz, não esperneia. Sofre. Mas até seu sofrimento é estranho, meio melancólico mas não; também não é psicótica nem psicopata.
A grande sacada do cineasta, neste filme, foi a construção dessa personagem. Justine. Todos os outros são “escadas’ destinadas a mostrar, através do relacionamento com ela, a estranheza do seu comportamento psicológico e social.
Justine incomoda.
Deslocada, uma espécie de ser estranho, não submetida às mesmas regras que a maioria de nós, uma bruxa que congrega forças estranhas, uma supermulher, uma criatura linda porém assustadora. O que costuma acalmar nossas angústias, nossas dúvidas sobre a vida, nos deixar mais tranquilos, nos ajudar a suportar melhor a vida? Um amor, livros, insights obtidos com psicanálise, remédios, filosofia, música, filmes, festas, companhia de amigos e da família, esportes, viagens, lugares legais, reconhecimento. Nada disso ajuda Justine. Ela continua mal, absurdamente infeliz, desconcertantemente infeliz, no dia do seu próprio casamento, naquele lugar maravilhoso, rodeada por seus familiares, chefe, colegas, o namorado, amada por todos.
Infeliz, “melancólica”. Até tomar seu “banho de lua”, no caso do filme, seu “banho de Melancholia”, quando então parece que as coisas entram em seus eixos, ela fica em paz, entra numa harmonia maior com tudo e com o Universo. O banho de melancholia renovou suas forças, devolveu-lhe a capacidade de conviver consigo mesma e com os outros, de se renovar, de aceitar mais as limitações das pessoas e das coisas, de estar mais em paz.
Aqui está a conclusão que Lars Von Trier nos apresenta: Justine é a encarnação da recusa, do desprezo pelos padrões psicológicos e sociais; é movida por forças estranhas, por forças cósmicas, talvez como as borboletas Monarca que coloquei no começo como exemplo de comportamento inexplicável. Tais forças ainda não foram nem reconhecidas nem mapeadas apesar de todo esforço da humanidade. Justine não é explicável pela Psicanálise.
Sua irmã, Claire, pelo contrário, estamos cansados de conhecer, se encaixa perfeitamente às teorias até agora criadas, é reconhecível até pelo senso comum: criatura neurótica, desajustada no fundo, mas doce, submissa, esforçada em suas mal-ajambradas convicções, porém confortável na sua adequação possível ao marido e a todas as coisas. Precisa, sempre, de outra pessoa para lhe explicar o que se passa em sua existência, para lhe mostrar como viver sua vida, para a acalmar no seu apavorante vislumbre de que é uma pessoa sem importância, sem peso, que não faz nada acontecer, que é medrosa e dependente.
Claire e o contraponto ideal à incompreensível psicologia da irmã.
Ponto para Lars Von Trier, de novo. É por isso que já disse uma vez, em outro artigo, que ele é antes de tudo um grande construtor de personagens.
Essas duas irmãs, simbolizando a aceitação possível e a rejeição das teorias sobre a personalidade, das teorias sobre a vida em geral, a aceitação e a rejeição das conveniências sociais, são personagens de um grande autor, um autor que conhece os meandros da caracterização de personagens e da roteirização cinematográfica.
Além, é claro, do profundo conhecimento sobre as mumunhas cinematográficas em geral.
Demais o início do filme, sob o prólogo da ópera de Wagner Tristão e Isolda, não? Ótima a escolha da música de Wagner para sonorizar o prólogo do filme, o resumo inicial, em câmera lentíssima de tudo o que vai se desenrolar em seguida. Por que Wagner e não Bach? Porque Wagner é o supra-sumo da música tonal da idade moderna, levou aos píncaros da glória a música tonal ocidental codificada no “Cravo bem temperado” por Bach. A música, como a limusine, serve para mostrar o término de um processo evolutivo, que se iniciou em um momento com algo simples, uma bicicleta até chegar à limusine, na música codificada por Bach até chegar a Wagner. Além disso, Tristão e Isolda refletem os complexos velhos temas tão banais da história amorosa dos seres humanos. É justo, então, já que precisamos de novos paradigmas de convivência, inclusive de convivência amorosa, que a derrocada dos velhos seja acompanhada sonoramente pelo que de melhor se conseguiu com as ciências musicais da época.
Espetaculares as iluminações dos amplos espaços noturnos dos jardins do castelo e do banho de melancolia da Justine, não? Efeitos da “Noite Americana” provavelmente; filmado de dia e transformado em noite com as artimanhas cinematográficas já de longo tempo manjadas. Uma citação ao percurso da evolução cinematográfca?
Para finalizar, o pôster internacional de apresentação do filme é referência à pintura de Sir John Everett Millais – Ofélia, que está na Tate Britain em Londres. O quadro inspirador mostra a moça, com os olhos abertos, morta, deitada num riacho. A pintura funciona como uma ilustração, conversa com Shakespeare, mostra o resultado de outra tragédia amorosa, a namorada suicida de Hamlet, outro mistério literário sobre o qual muito se escreveu e muito se escreverá. Por que fazer referência a esse pintor? Por que a escolha específica desse pintor? Porque ele também renegou e revolucionou a arte acadêmica de seu tempo, como Lars Von Trier faz com o cinema atual.