Eram seis horas da manhã, em ponto, quando Quintino chorou pela primeira vez. Nasceu no Hospital do Servidor, sujo, sério, com olhos abertos e sobrancelhas imperceptíveis porém franzidas. Veio tão sério e crítico que a enfermeira resmungou um ríspido Credo!, justificado logo em seguida por um sonoro Não tenho culpa alguma de você ter nascido no corredor.
Recém saído das mamas da mãe, uma portuguesa falastrona e acolhedora, Quintino desbravou os quartos, a cozinha, a avó e o quintal de sua casa de tijolos. Ficava na Penha, bem perto de uma dessas pequenas igrejinhas de bairro, na mesma rua onde empinou várias e coloridas pipas, a Rua da Avenida. Já havia conhecido dois amores quando se perguntou como uma rua poderia ser avenida, e se debruçou sobre enormes maços de papel, empilhados desordenadamente, Arrume tudo até às 15h00.
Era seu primeiro emprego, como auxiliar de escritório, e o havia conseguido por indicação de um primo seu, morador do Brás. Achou tudo uma injustiça, já que outros dois candidatos, com muito mais experiência do que ele, Mais louvor, disse mais tarde à mãe, deixaram de ser escolhidos. Não questionou, embora tenha hesitado um pouco ao ser comunicado pelo Brás, Quintino, meu querido, vamos trabalhar juntos.
Foi mais ou menos no segundo ou terceiro dia depois de ter conseguido o trabalho que sua mãe lhe disse, Você parece um desses fidalgos de que sua bisa me contava quando eu era moça, e sorria, opulenta. A avó concordava, experiente, Este, debruça os olhos onde os outros querem pôr a mão.
Não se sabe por qual motivo exatamente, mas apesar do título ou talvez por conta dele, Quintino insistia em se meter em brigas do bairro. Não tolerava humilhação em público, mal-trato de criança ou roubo de gol em futebol de rua. Das linhas com cerol, então, dizia, Tenho ofensa, não tenho ódio, é pior: tenho ofensa.
Foi subindo na vida. Chegou ao cargo de auxiliar administrativo de um escritório de advocacia, com curso de contabilidade terminado e o diploma pendurado na sala. É bem verdade que este já era o segundo escritório em que fora trabalhar, bem que demitiu-se do primeiro no instante seguinte à risada ostensiva do administrador, Larga de ser ridículo Quintino, como assim pendurar seu diploma na parede?
Ia todo dia à zona oeste, em seu fusca verde. Ano 1975, motor 1400 e à gasolina, detalhava quando lhe perguntavam, Dei-lhe o nome de Chão de Estrelas.
Chão, o apelido do fusca, ampliou os olhos e os calos de Quintino.
Guiava-o limpo e encerado, justificava o capacete que usava ao dirigir pela falta de segurança de carro antigo e embandeirava um adesivo colado no vidro traseiro, Não tenha inveja de mim, trabalhe. À noite, depois do trabalho, dava voltas tímidas por uma cidade imensa, cujos bairros, Vila Clementina! Vila Sônia! Pinheiros!, ligava aos pontos finais e iniciais de seus ônibus infantis.
Foi na sua segunda visita à Vila Madalena, em uma instransponível sexta-feira à noite, que aconteceu, a sério, pela primeira vez. Quatro rapazotes entrincheiravam duas mocinhas, miúdas, em frente a uma danceteria, e lhes desciam pontapés sem dó, Não vai me querer?, dava-lhe um pontapé, Vem dar mole e não vai querer?, tapa na cara. Quintino parou e gritou de dentro, Larga, safado! Pára, canalha!
Outros oito sujeitos saíram da danceteria, aos berros de Cadê aquelas biscates?, quando o Chão já estava estacionado, Quintino embrutecido com seus então dezoito punhos fechados, os olhos semi-cerrados e a ofensa no coração, Tenho ofensa, gritou, ainda de capacete.
O capacete que o salvou. Tinha a aparência de um tísico e como de capacete se assemelhasse a um pirulito, os doze rapazotes se sentiram ainda mais encorajados, por além de sua imensidão numérica. Foram dois minutos de severos pontapés, tapas, socos cuspes e garrafas. Trinta minutos depois, quando a polícia chegou e levou Quintino para um hospital, viu-se o Chão arrebentado, o pequeno vidro traseiro e o espelho esquerdo em pedaços, além de risquinhos minúsculos e laboriosos, Desses doem mais, eu sei, Chão.
As moças que salvou o acompanharam entre chorosas e agradecidas ao hospital. Uma delas se chamava Alaíde e morava na Penha a três quadras da sua casa.
Foi ela que, com Quintino em triste figura, dirigiu o Chão até a Penha e foi ela que pela primeira vez ouviu o consenso dos amigos e familiares, que acabaram por o considerar como um apaixonado sem objeto.
A verdade é que Quintino repetiu a história da Vila Madalena quase uma centena de vezes, das maneiras mais diversas possíveis.
Às vezes se insurgia contra o arrocho salarial, contra o governo ou a favor dele, ofendia o diretor da escola dos filhos, que suspendera uma classe inteira sem motivo, gritava a favor de um cinema engajado, contra a globalização, a favor de qualquer resolução da situação na Faixa de Gaza, entrava em uma contenda sobre jogo de bolinha de gude, e fazia piquete por um jornalismo mais sério e censura na televisão.
Invariavelmente as coisas esquentavam a tal ponto, que, em defesa da parte oprimida na discussão, partia para a ofensa, Ofensa, seu bastardo!, dizia.
Chão tinha uma oficina cativa, já andava pela oitava lataria, completa, do começo ao fim, e Quintino fazia questão de pedir, tão logo abrisse um dos dois olhos, Avisem a Alaíde.
Nos últimos tempos, aposentou-se como auxiliar de administrador de escritório. Todos os dias, de manhã, pára o Chão em frente ao boteco e se senta na cadeira branca de plástico e na mesa de bar de repetidos quatro pés. Dá conselhos e indicações desde que põe o capacete até o momento em que o retira, no bar, já na Rua da Consolação.
Dois copos de pinga e toca um piano imaginário. Todos os dias é Dois copos de pinga!, e bota a tocar seu piano imaginário.
Lembra que sempre quis alguém para sentar ao seu lado no Chão, em suas voltas por São Paulo, mas não encontrou.
Um apaixonado sem objeto, relembra. De fato, agora lhe parece fazer algum sentido. Não sabe porque bateu tanto porque apanhou tanto e, dando um tapa na testa, É certo, sem dúvida!, só pode ser coisa desse tempo doido, da minha gente amalucada que nessa diversidade de louco não consegue escolher nem qual pipa quer empinar, nem para qual lado quer ir.
E chamando o dono do bar,
Aleixo!,
Diga, Dom Quintino,
Fale para alguém mandar um recado para a Alaíde de que estou aqui.
(Artigo escrito por Pedro Campos. Outros artigos do mesmo autor poderão ser lidos em: http://www.literarodia.blogspot.com)